domingo, 16 de dezembro de 2007

Samuel; Modelo de profeta pós moderno - ISm. 9.1-9

1) INTRODUÇÃO

Desde os tempos e civilizações remotas, a figura do vidente, do adivinho, do profeta, daquele que desvenda o presente e o futuro é imprescindível para discernimento da realidade e para mediação com a divindade nas mais diversas culturas antigas. Na região da Mesopotâmia não foi diferente, sendo este personagem (o profeta) figura presente na maioria dos textos religiosos e régios encontrados nesta região[1].
Em Israel, o profetismo surge, segundo Seubert (1992, p. 9 – 16) devido a fatores sociorreligiosos: o profetismo era uma voz que chamava o povo a retornar a lei mosaica, em tempos de depravação do culto e do reino.
Apesar de o próprio Abraão ser chamado de profeta (Gn. 20.7), além de Moisés (Dt. 34.10), Miriam (Ex. 15.20), os setenta no deserto (Nm. 11. 16-17, 24-29) e Débora (Jz. 4.4), pode-se afirmar que “parece claro que os autores bíblicos interpretaram Samuel como o primeiro grande profeta”[2]. Mas e estas denominações de profetas antes da monarquia? Sicre (1996, p. 233) afirma que estas passagens não significam informações sobre fatos históricos, mais uma interpretação de gerações posteriores.
Dessa forma Samuel é a figura que merece atenção especial, na medida em que nele os autores bíblicos apresentam as figuras de sacerdote, juiz, homem de Deus, Vidente e Profeta[3], sendo que estes três últimos termos são conceituações características do profetismo israelita.
Tendo então Samuel como a figura inaugural do profetismo israelita, cabe em um segundo momento conceituar os três termos proféticos designados na narração bíblica a este personagem: homem de Deus, vidente e profeta.




2) PROFETISMO EM ISRAEL: CONCEITUAÇÃO DOS TERMOS EM SAMUEL

Iniciando esta segunda parte, uma pergunta surge: Por que conceituar estes termos? Conforme afirma Sicre, “nós usamos uma só palavra, de origem grega, profeta, para referir-nos a certos personagens que a Bíblia designa com títulos muito diferentes”[4]. Se já é um problema um mesmo termo para vários personagens diferentes, o que dizer então para vários conceitos em um único personagem? Por isso, vale tratar de forma sintética e separada cada conceito aplicado a Samuel na narrativa bíblica, em busca de um melhor entendimento do inicio do profetismo israelita.

2.1) Homem de Deus (Ish Há Elohim)
Este termo aparece quatro vezes se referindo a Samuel, todas elas citadas na narrativa das jumentas de Saul (1 Sm. 9). Conforme afirma Fohrer (1993, p. 287) esta expressão atribui ao seu portador dos poderes de El, poderes supra humanos e divinos. O homem de Deus é um profeta detentor de uma relação íntima com Deus, o que lhe confere a capacidade de operar milagres[5]. O que parece implícito nesta terminologia é a capacidade do individuo de não só transmitir um oráculo, mas de ter um poder sobrenatural de transformar a realidade. Samuel transforma a realidade, quando é o instrumento de transição entre período dos juizes e monarquia[6].

2.2) Vidente (Roeh)
O termo vidente aparece onze vezes em todo Primeiro Testamento, sendo que em sete dessas vezes relacionados a Samuel (I Sm. 9.9, 11, 18, 19; I Cr. 9. 22; 26.28; 29.29). Conforme Sicre, Samuel traz dados interessantes sobre a antiga imagem do vidente:
Um homem que conhece coisas ocultas, e que se pode consultar dando-lhes uma gorjeta. Já que aparece pelo povo precisamente quando se vai oferecer um sacrifício, alguns pensam que também exercia funções sacerdotais. Contudo, é provável que devamos ver os sacrifícios como parte integrante de sua atividade de vidente. Com efeito, um dos procedimentos típicos para adivinhar era observar as vísceras das vítimas. Mesmo quando esta prática não é mencionada, é freqüente oferecer sacrifícios como rito preparatório e propiciatório. (SICRE, 1996, p. 75-76).

Já Fohrer (1993, p. 274-275) afirma que o videntismo era característica das religiões nômades[7], não associado a qualquer tipo de santuário e estritamente baseado em visões. Além disso, Eichrodt afirma que “...em nenhum momento nós encontramos Samuel utilizando artes de presságio”[8].
Em Israel, o vidente assumia também atividades políticas, intervindo nos problemas da nação incipiente em favor do povo e em nome de Javé. Sua função como intermediário entre Javé e o povo era reconhecida como a continuação de um diálogo divino entre o povo e seu Deus[9].
Se o vidente é aquele que conhece o oculto, tem visões e influi de forma decisiva nas questões políticas, Samuel se desponta de forma especial contendo em suas narrativas todas estas características.

2.3) Profeta (Nabi)
Principal termo para se referir aos intermediários, aparece 315 vezes no Primeiro Testamento, sendo que se referindo a Samuel, aparece quatro vezes (I Sm. 10.5, 10, 11; 19.20). Este termo possui significado controverso, podendo exprimir desde borbulhar, ferver, derramar até falar de forma fervorosa ou sob transe[10]. Pode ser também relacionado ao verbo acádico nabû, significando chamar, anunciar ou nomear[11]. Este termo poderia ser aplicado tanto aos profetas de Javé quanto aos falsos profetas (SICRE; 1998, p. 89). Era relacionado, inicialmente ao profetismo coletivo e posteriormente aos profetas individuais, clássicos ou escritores[12]. Como é de difícil compreensão, pode-se qualificar o nabi, de maneira simples, como aquele que comunica a palavra de outra pessoa[13].
O nebiísmo tem seu inicio em áreas cultivadas do Antigo Oriente Médio, relacionado com santuários, cortes reais, cultos de fertilidade e transes extáticos (Cf. FOHRER, 1982, p. 275). Esta forma de profecia se caracterizava por pequenos ditos proféticos (palavras desconectadas) e experiências extáticas em grupo ou individuais (estas ocasionadas por dança, música ou possessão)[14].
Esse nebiísmo é assumido pelos israelitas a partir da entrada na terra de Canaã, e assume uma função estimuladora de caráter patriótico e religioso entre o povo[15]. Posteriormente, o videntismo se funde com o nebiísmo, criando aqueles que são chamados de profetas clássicos. Profetas estes que preservam características destes dois movimentos, mas manifestam características únicas em si[16], sendo que, uma destas características únicas do profetismo israelita, é uma sua liberdade de critica ao rei e ao culto, coisa inexistente nos outros movimentos proféticos do Antigo Oriente[17].
Mas qual então a relação de Samuel com o nebiísmo? Samuel é um típico guardador da religião mosaica, relacionado ao culto e ao rei, mas critico destas instituições, além de encabeçar uma liga de profetas extáticos (I Sm. 19.18-24).

A partir de toda essa análise das principais terminologias dadas a Samuel nas narrativas do Primeiro Testamento cabe, a guisa de conclusão, apontar algumas considerações sobre o profetismo israelita a partir de Samuel.

3) CONSIDERAÇÕES

Após breve descrição do inicio do profetismo israelita, a partir da figura de Samuel, cabe ressaltar que em Israel o profetismo pode ser caracterizado por uma manifestação adaptativo-inovadora.
Adaptativo na medida em que não despreza suas raízes do videntismo nômade nem a influência do nebiísmo agrícola do Antigo Oriente Próximo. Isto fica claro nas narrativas referentes a profetas posteriores como Elias - Eliseu (videntismo) e Isaias – Ezequiel (nebiísmo)[18].
Inovador quando apresenta a característica marcante da crítica aos poderes religiosos - reais. O profeta se torna o principal intermediário entre Deus e seu povo, valorizando o retorno a religião mosaica e ao nacionalismo estrito, muitas vezes abandonado por sacerdotes e reis corrompidos[19]. Além disso, outra característica é única no profetismo israelita: a divindade fala sem que lhe seja perguntado[20]. Em Samuel isto é realidade, quando Javé o revela sobre a unção de Saul como rei (I Sm. 9-10). A divindade também toma a iniciativa de se revelar, e o profeta torna-se esse transmissor da revelação divina ao povo.
Samuel se mostra uma figura que espelha bem essa visão adaptativo-inovadora do profetismo incipiente em Israel: era homem de Deus (pois transformava sua realidade através de suas ações), vidente (revelava o oculto e tinha poder político) e nabi (relacionado ao culto, ao rei e guardador da religião mosaica). Ao mesmo tempo, demonstra-se crítico ao sistema religioso (principalmente ao sacerdócio de Eli – I Sm. 3.11-21), instrumento de transição a uma nova realidade de seu povo, a realidade da monarquia (da qual ele se torna crítico).
Em Samuel, dá-se inicio a um movimento de desaparecimento e depreciação da figura do vidente, em detrimento da figura do nabi[21]. Só que o nabi que permanece em Israel não é o influenciado pela cultura do Oriente Antigo, mas sim por Samuel. Assim, Samuel torna-se o modelo do que é ser profeta em Israel.

4) E o que isso quem a ver com o cristão do século XXI?

Samuel nos ensina que o profeta é aquele que interfere em sua realidade, sendo critico de toda instituição que perde seu foco de servidor de Javé, em prol dos interesses de uma minoria.
Nossa função profética na sociedade atual é a de levantar contra as injustiças de todas as instituições anti-cristãs, mesmo se essas instituições se dizerem cristãs.

Para pensar: “A profecia não existe para transformar homens em profetas, mas para transformá-los em testemunhas de Deus, quando se cumprem”.


[1] Para maior conhecimento desta literatura, vide PRITCHARD, James B. Ancient Near eastern texts: relating to the Old Testament. 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1974. 710p.
[2] SICRE, 1996, p. 235.
[3] Estes termos aparecem principalmente em I Sm 1 – 9.
[4] SICRE, 1996, p. 74.
[5] Ibidem, 1996, p. 79.
[6] BLANCO, 2004, p. 31.
[7] Para maior aprofundamento sobre a religião nômade em Israel, vide FOHER, Georg. História da Religião de Israel. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1982. 507p.
[8] EICHRODT, 2004, p. 269.
[9] Ibidem, 2004, p. 267.
[10] HARRIS; JUNIOR; WALTKE, 1998, p. 904 - 905.
[11] WILSON, 1993, p. 130.
[12] BOUZON, 2002, p. 40.
[13] FARIA, 2006, p. 14.
[14] EICHRODT, 2004, p. 276-284.
[15] FOHRER, 1982, p. 280.
[16] Ibidem, 1982, p. 280.
[17] SICRE, 1996, p. 235.
[18] Ibidem, 2004, p. 291-300.
[19] BLANCO, 2004, p. 33.
[20] ASURMENDI, 1988, p. 18.
[21] VAWTER, 2007, p. 400.

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